sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Lição do Chefe Aritogogo




Em princípio do século XVII, eu participava dos serviços de uma embarcação francesa, em transporte de pau-Brasil,
Fizemos amizade com os índios, e, eu como português de Alentejo, não tive dificuldades para aprender alguns rudimentos da língua indígena. Em razão disso o chefe da tribo, que respondia pelo nome de Aritogogo, dedicava-me especial atenção. Na nossa sexta viagem, o velho índio chamou-me em particular, ministrando-me uma das mais belas lições de filosofia que já recebi em toda a minha vida. Observando-nos a afoiteza em carregar o navio com amadeira preciosa, perguntou-me ele, na linguagem que lhe era familiar:
- Escute, meu amigo, não há lenha em sua terra? É preciso enfrentar o abismo das águas para alimentar o fogo no lar distante?
- Não Aritogogo - respondi, esboçando um sorriso de pretensa superioridade -, a madeira não se destina a fogão. O pau-Brasil fornece tinta para a indústria da Europa.
- Mas, para que tanta tinta? - tornou ele, assombrado.
- Para tingir a roupa dos brancos - expliquei.
- Ah! Vêm buscar a lenha para repartir com o povo - exclamou o cacique -, assim como nós buscamos remédio para os que adoecem e comida para os que têm fome! . . .
- Não, não - esclareci -; somos empregados de um industrial. Toda a carga pertence a um só homem. Trata-se de poderoso negociante de tintas, na França.
Aritogogo arregalou os olhos, espantado, e indagou:
- Que deseja esse homem com tantos paus e tanta tinta?
- Fazer fortuna - respondi -, alcançar muito dinheiro, ter muitas casas e muitos servidores. . .
O chefe índio sacudiu a cabeça e tornou a perguntar:
- Mas esse homem nunca morrerá?
Ri-me francamente da interrogação ingênua e observei:
- Morrerá, por certo.
- Então? - disse o índio - se ele vai morrer, como nós todos, deve ser tolo em procurar tanto peso para o coração.
Tentei corrigir-lhe a concepção, obtemperando:
- Esse homem, Aritogogo, está preparando o futuro da família. Naturalmente pretende legar aos filhos uma grande herança, cerca-los de fortuna sólida. . .
Foi aí que o cacique mostrou um gesto singular de desânimo, e falou, em tom grave:
Ah! Meu branco, vocês estão procurando enganar a Deus. As tribos pacíficas, quando começam a cogitar desse assunto, esbarram nas guerras em que se destroem umas às outras. O único ser, que pode legar uma herança legítima aos nossos filhos, é o dono invisível da terra e do Céu. O sol, a chuva, o ar, o chão, as pedras, as árvores, os rios são a propriedade de Deus que, por ela, nos ensina as suas leis. Retirar os nossos filhos do trabalho natural é pretender enganar o Eterno. Como podem os Brancos pensar nisso?
- Nesse momento, o comandante chamou-me ao posto e despedi-me de Aritogogo, para não mais tornar a vê-lo.

- Desde então, modifiquei minha idéia de ganho, compreendendo onde estão o supérfluo e o necessário, a previdência e o desperdício, a sobriedade e a avareza, a reserva justa e a ambição criminosa. A lição de Aritogogo incorporou-se ao meu espírito para sempre. Com ela, aprendi que dominar o dinheiro e aproveita-lo a bem de todos, socorrendo necessidades e distribuindo bom ânimo, é obra do homem espiritualizado; mas, deixar-se dominar pelo ouro, na preocupação de ganho transitório, não reparando meios para atingir os fins, açambarcando direitos de outrem e valendo-se de todas as situações para rechear os cofres e multiplicar os lucros, tão-somente para manter a superioridade convencional, em prejuízo da consciência, é obra do homem vulgar, escravizado aos gênios perversos da tirania.

(Livro Pontos e Contos – Humberto de Campos)